"Faux meats", o Gary e os nomes tradicionais. Eu explico!
- comidadegrilo
- 24 de fev. de 2018
- 6 min de leitura
Afinal podemos ou não chamar uma alheira de tal se esta não tiver carne? E se deixámos a carne para trás, porquê comer produtos que a imitam? Hoje, a minha resposta a estas perguntas que tantos comedores de larvas (e alguns grilos) fazem.

Olá grilos! Há já algum tempo que não publico uma crónica e achei que poderiam estar com saudades portanto decidi apostar neste tema que mexe sempre comigo.
A iguaria que se vê na foto desta publicação é nada mais nada menos que a minha última refeição quando fui a Londres - Vegetarian Lincolnshire Sausages. Alguns grilos estarão de água na boca, outros estarão repugnados. E, por este mundo fora, muitos comedores de larvas diriam "Vegetarianas?? Mas levam o quê? Chama a isso o que quiseres, mas não são salsichas!". Não? Porquê? Vamos falar sobre isto!
FAUX MEATS
Para quem não percebe o que esta mixórdia de francês e inglês significa, faux meats são produtos alternativos à carne (ou ao peixe e marisco) que tentam imitar o seu sabor, textura, cheiro e/ou aparência (faux = falso ; meat = carne).
Um comentário muito frequente que os grilos ouvem é "Não querem comer carne, não comam! Não escolheram comer só legumes? Não dizem que são tão bons? Então para que querem imitar a carne? Se querem comer algo que parece carne, COMAM CARNE!". É normal que as pessoas assumam que os os grilos seguem a alimentação que seguem por serem loucamente apaixonados por salada, porém isso pode estar bem longe de ser verdade.
Como referi na primeira publicação do Comida de Grilo, os principais motivos que levam alguém a tornar-se num grilo são ambientais, morais ou de saúde. Isto quer dizer que a grande maioria dos grilos não exclui a carne porque odeia este alimento mas sim pelo impacto que esta tem em si mesmos, física ou psicologicamente, ou no ambiente. Porém gostam do sabor da mesma. Cresceram com esses sabores e se têm a oportunidade de continuar a comer algo de que gostam mas sem as consequências negativas do original, porquê evitá-lo?
Muitos dos grilos que o são por questões morais não conseguem gostar deste tipo de alimentos pois a semelhança aos originais os relembra de algo que neste momento os repugna. E não há nada de mal nisso! E muitos comedores de larvas que querem passar a ser grilos se iniciam ao experimentar os produtos que imitam as comidas a que estão habituados para facilitar o processo e também não há nada de mal nisso.
O GARY
O Gary é uma espécie de private joke entre os grilos hardcore. Tudo começou porque um amante de queijo estava revoltadíssimo com o facto de um produto 100% vegetal da Sainsbury's que imitava este alimento ser chamado de queijo vegan, fazendo uma extensa publicação sobre a sua opinião, em que diz "Call it Gary or something just don't call it cheese because it's not cheese!" (em português, "Chamem-lhe Gary ou outra coisa, simplesmente não lhe chamem de queijo porque não é queijo!"). A sua publicação tornou-se tão viral que a Sainsbury's acabou mesmo por alterar o nome do produto para Gary.
Mas mais do conhecimento de todos é a constante luta da indústria do leite para a proibição da venda de bebidas vegetais no mesmo corredor que o leite de vaca, bem como a utilização da denominação "leite" e "queijo" nos produtos de origem vegetal, exceto quando se trata de leite de coco devido às características do fruto e já longa utilização do termo.
Mas será que faz sentido poder denominar-se algo de leite se vem de certas plantas mas quando vem de outras já não? Na verdade, duas das definições atuais da palavra "leite" no dicionário são "[Botânica] Suco lácteo de certas plantas; Líquido esbranquiçado ou semelhante ao leite (ex.: leite de soja)." e lacticínio define-se como "Produto (comestível) derivado do leite, como queijo, manteiga, natas, iogurte, etc". Então se um lacticínio é um produto derivado do leite e se o leite é um líquido esbranquiçado que, por exemplo, pode derivar da soja, o que nos impede de chamar queijo a um produto derivado deste grão?
Temos que ter noção que estas denominações também ajudam os compradores. Se uma pessoa quer algo para substituir natas e a embalagem não pode dizer "produto alternativo a natas" ou "natas vegetais" como é que a pessoa vai saber o que está dentro da embalagem? Bem que pode olhar para a imagem mas será aquilo doce, ideal para sobremesas? Ou será que não e dá para um strogonoff? Será substituto de bechamel? De leite? De iogurte? Se dermos um nome estranho e diferente a um produto ninguém o comprará pois não se sabe exatamente o que é nem para que fins se deve usar.
Mais que tudo, porque é que isto nunca incomodou ninguém antes? É que antes das bebidas vegetais ganharem fama, já havia mil e um produtos de higiene com "leite de aveia" e "leite de amêndoa". E a "manteiga" de amendoim também nunca chateou ninguém!

NOMES TRADICIONAIS
E, por fim, os nomes tradicionais. Sempre que alguém me diz que não posso chamar isto ou aquilo a um produto pois não o é, eu questiono de volta qual é então a definição desse produto.
Um exemplo disto é o caso com que abri esta publicação: a alheira! Se digo "alheira vegetariana" há sempre alguém que me cai em cima, que diz que não posso chamar aquilo de alheira. E questiono porquê, pergunto o que é realmente uma alheira. Quando ficam meios atrapalhados lá vou eu, qual grilo informado, contar a história da origem deste alimento. E como eu até gosto de vocês, vou partilhar convosco!

Ora reza a lenda que algures na história do mundo houve um momento de perseguição aos judeus, não é? E o que é que este grupo de pessoas não come? Carne de porco! Então uma forma de identificar e diferenciar os judeus dos cristãos era vendo se estes tinham chouriços a fumar nas suas casas. Ora os judeus, para se passarem por cristãos e não irem dessa para melhor, inventaram um enchido à base de pão e outros alimentos que não fossem carne de porco, que normalmente era carne de aves e/ou legumes (especialmente se houvesse pouca carne). Assim, quando a Inquisição via os enchidos pendurados no fumeiro, acreditava que se tratava de chouriço (de porco) e que se estava perante uma família cristã. Entretanto este alimento popularizou-se e os cristãos começaram a fazer as suas versões onde já juntavam porco. Conclusão: mais depressa uma "alheira vegetariana" está próxima da original que a maioria das que se vendem no mercado, que têm carne de porco.
Ora agora que já vos chateei com um pouco de história, vamos continuar com o tema.
Será que o que dá nome a um prato é um dos ingredientes da sua composição ou a técnica utilizada para o confecionar? Porque uma coisa é, por exemplo, uma picanha, que é feita com um só ingrediente e cozinhada com sal e pouco mais. Pegar numa cenoura, grelhá-la com sal e chamar-lhe de picanha, minha gente, estou de acordo convosco: isso é uma blasfémia!
Mas vamos imaginar uma bolonhesa... Se se cozer carne picada em água com sal e se puser em cima de massa pode-se chamar esparguete à bolonhesa? Claro que não! Onde está a técnica da bolonhesa?! Mas se se estufar carne picada num molho de tomate rico, feito com cebola, alho e ervas aromáticas já se pode chamar de bolonhesa, certo? Bem... Se formos pela ideologia que só se pode chamar um prato "pelo nome" se este for feito exatamente com os ingredientes da receita tradicional, então não podemos chamar uma alheira de tal se esta levar porco e não podemos chamar uma bolonhesa de tal se esta for feita com carne de porco ou de aves (pois a tradicional é com carne de vaca).

Mas ninguém fica ofendido com uma bolonhesa feita com carne de porco ou com carne de aves. Porquê? Porque o sabor é praticamente igual! Porque o que dá sabor ao prato não é a proteína utilizada mas sim todo o sabor da cebola e alho refogados, do tomate estufado, das ervas aromáticas. E uma bolonhesa vegetariana é tão admissível quanto uma de aves ou de porco, pois é feita exatamente da mesma forma mas em vez de levar carne de porco ou de aves picada leva cogumelos, legumes ou soja picada. Mas o sabor é o mesmo, a textura é a mesma, a técnica é a mesma.
E assim é para muitos outros pratos!
Se um cozido à portuguesa era algo que se fazia com tudo o que havia em casa (o típico "O que é? Não importa! Manda para o cozido!"), especialmente em tempos de pobreza, em que a carne era escassa e o prato era mais feito de legumes que outra coisa, porquê a aversão a um "cozido vegetariano"? É o cozido dos pobres! Sim, porque os legumes são mais baratos que a carne! E quando não havia carne fazia-se só com legumes!
Portanto, só para chatear, deixo aqui uma foto do último cozido que fiz:

Lembrem-se que desde sempre se deu nomes às coisas só por fazerem lembrar outras. Os "peixinhos da horta" eram os "jaquinzinhos fritos" das pessoas do interior do país que, por falta de métodos de conservação e meios de transporte rápidos, não tinham acesso a peixe fresco e lá matavam as saudades com feijão verde.
Se antes não chateava ninguém, não vamos criar agora um problema só por a tendência a adquirir e consumir este tipo de produtos estar a aumentar!