E se eu não comer carne? Que diferença faz?
- comidadegrilo
- 8 de abr. de 2021
- 7 min de leitura
Atualizado: 9 de abr. de 2021
Ora estava eu a escrever a publicação sobre a minha Páscoa vegan quando chega o momento em que quero dizer que, com aquela decisão da minha família, a vida de mais um animal foi salva.
Mas essas palavras exatas estavam-me a dar comichão, porque todos sabemos que não é bem assim. Quando alguém decide não comer carne, o animal que está na montra do talho simplesmente não volta a ganhar vida e seguir o seu caminho feliz e contente, nem os produtores olham para um dos animais que estão a criar e dizem "já viste? Tiveste sorte!" e abrem a porta do curral e dizem "vai bichinho, sê livre e feliz".
Não, todos sabemos que não é assim que as coisas funcionam. Então, de que vale não comer carne? Para quê virar grilo? Que diferença vai fazer? É disso mesmo que quero falar.

Bom, na publicação em questão acabei por escrever "Este ano [esta Páscoa] poupou-se a vida de pelo menos um cabritinho fofo e inocente.". Quis manter as coisas leves. Afinal, era uma publicação de celebração e tento ser sempre o mais inclusiva possível às diferentes razões que levam alguém a ser um grilo ou um comedor de larvas curioso, pois nem todos o fazem por questões de sofrimento animal. Por isso evito debater esse tema muito a fundo. Mas esta questão, de como funciona logisticamente a eliminação dos produtos animais da dieta, acaba por ser interessante não só aos que estão nisto por questão éticas, como aos que estão por questões ambientais.
E, como as crónicas são o meu recanto, onde despejo tudo com menos filtros com fim a mostrar a minha perspetiva, achei que seria interessante criar uma crónica sobre este tema. Até porque já tinha saudades de escrever uma.
É fácil cair no erro de pensar "Mas se não comer carne muda o quê? O animal já está morto, está ali no talho! Portanto eu comer ou não, não vai fazer diferença, o animal já morreu!". Bom, não é bem assim, porque a procura define a oferta. E para não tornar o tema demasiado pesado, vamos arranjar um exemplo mais... alegre!
Imaginem que todos os dias vocês, o vosso vizinho de cima e a vossa vizinha de baixo comem uma bola de berlim cada, no café da vossa rua. Então, todos os dias o pasteleiro faz 3 bolas de berlim a contar convosco. Mas um dia vocês dizem para vocês mesmo "não, isto não é um hábito saudável! Vou deixar de comer bolas de berlim!" e, nesse dia, decidem então comprar uma maçã. Ora nesse dia o pasteleiro já tinha feito as três bolas de berlim mas, ao fim do dia, sobrou uma. Então ele pensa "estranho... mas pronto, amanhã faço só duas e com esta que sobrou já ficam as três de amanhã". Ora, logo aqui já houve uma diferença! Porque no dia seguinte vai logo haver menos uma bola de berlim a ser feita, embora a oferta continue a ser a mesma.
Mas no dia seguinte vocês mantêm-se fiéis aos vossos novos hábitos e voltam a comprar uma maçã em vez de uma bola de berlim. E, novamente, volta a sobrar uma bola de berlim ao fim do dia (vá, antes que comecem com coisas, não é a mesma bola de ontem, que a do dia anterior foi a primeira a ser vendida para não se estragar! É uma das novas fresquinhas, feitas no dia. E elas aguentam bem durante uns três dias também).
E o que acontece? O pasteleiro pensa "então mas agora só se vendem dois bola de berlim por dia? Então pronto, amanhã faço só uma e esta que sobrou fica a segunda de que preciso. Agora parece que basta ter duas". E, de repente, o pasteleiro passou de fazer três bolas de berlim todos os dias para, nesse dia, fazer só uma.
Claro que daí em diante ele irá passar a fazer duas por dia. Mas lá está, é menos uma que ele faz. E isto é a representação do impacto do veganismo. Quando deixamos de comprar os produtos, é a forma de mudar o mercado.
Levando isto agora para o contexto em questão, ao absterem-se de comprar carne já não é necessário criar e matar um animal a contar convosco, com o vosso consumo. Portanto quando se diz "vida salva" não é bem o termo correto e "vida poupada" talvez seja o que encaixa melhor, porque pode-se salvar uma vida que nunca chegou a existir? Ao absterem-se de comprar carne, é menos um animal que vai ser criado, que vai passar por uma vida de tormentas e uma morte brutal e precoce. Não salvam um animal já existente do seu inevitável destino, mas evitam que haja mais animais a ser criados para esse mesmo destino.
"Mas então..." dizem vocês "neste caso da Páscoa da tua família isso não é um bom exemplo, porque a tua família não deixou de comer bolas de berlim todos os dias! Por isso o pasteleiro vai continuar a fazer bolas de berlim diariamente a contar com eles, porque é mais provável eles comprarem a não comprarem". Bom, sim, mas não exactamente.
Lembram-se do do primeiro dia em que decidem comer a maçã e sobra uma bola de berlim então o pasteleiro faz menos uma no dia seguinte? Pois, a lógica é um pouco essa.
O pasteleiro fazia 3 bolas de berlim: uma para vocês, uma para a vizinha de baixo e outra para o vizinho de cima. Agora já só faz duas, uma para cada vizinho, pois vocês já não comem. Mas o que acontece se os vizinhos deixarem de comer bolas de berlim todos os dias e, de vez em quando, optarem por comer uma maçã em vez da bola de berlim? Nos dias em que decidem comer maça, sobram bolas de berlim, mas ficam para o dia seguinte, levando a que, no dia seguinte, o pasteleiro não tenha de fazer tantas.
É verdade que o café continua a ter duas bolas de berlim à venda todos os dias, mas nem todos os dias são feitas duas bolas de berlim. Se em quatro dias o pasteleiro faria, no passado, 12 bolas de berlim, agora que vocês já não comem já só faria 8. Mas se, por exemplo, nestes quatro dias ambos os vizinhos não comerem bolas de berlim no primeiro dia, o vizinho de cima não comer no segundo dia embora a de baixo sim, no terceiro dia trocam e o vizinho de cima come bola de berlim mas a de baixo não e no quarto dia lá vão os dois matar as saudades e ambos comem bolas de berlim, então nestes quatro dias o pasteleiro apenas teve de fazer 4 bolas de berlim para responder à procura.
Foram demasiados dias e demasiadas bolas de berlim, já vos perdi em tanta palavra. Tomem lá um esquema:
CONSUMO
ANTES - Quando todos comiam bolas de berlim
Vocês Vizinho de Cima Vizinha de Baixo | Produz-se Sobra
1º DIA 🥯 🥯 🥯 🥯🥯🥯 -
2º DIA 🥯 🥯 🥯 🥯🥯🥯 -
3º DIA 🥯 🥯 🥯 🥯🥯🥯 -
4º DIA 🥯 🥯 🥯 🥯🥯🥯 -
TOTAL PRODUZIDO: 12
Quando (só) vocês decidem deixam de comer bolas de berlim
Vocês Vizinho de Cima Vizinha de Baixo | Produz-se Sobra
1º DIA 🍏 🥯 🥯 🥯🥯🥯 🥯
2º DIA 🍏 🥯 🥯 🥯🥯 🥯
3º DIA 🍏 🥯 🥯 🥯 -
4º DIA 🍏 🥯 🥯 🥯🥯 -
TOTAL PRODUZIDO: 8
AGORA - Quando vocês já deixaram de comer bolas de berlim e agora os vossos vizinhos decidem reduziram o seu consumo
Vocês Vizinho de Cima Vizinha de Baixo | Produz-se Sobra
1º DIA 🍏 🍏 🍏 🥯🥯 🥯🥯
2º DIA 🍏 🍏 🥯 - 🥯
3º DIA 🍏 🥯 🍏 🥯 🥯
4º DIA 🍏 🥯 🥯 🥯 -
TOTAL PRODUZIDO: 4
Espero que tenham gostado do meu esquema super desnecessário mas que me diverti a fazer.
Em conclusão, com a vossa mudança houve uma redução da produção, mas o facto dos vizinhos terem reduzido o seu consumo ajudou a reduzir ainda mais essa produção. Embora cada vizinho em si tenha contribuído menos do que podia, pois cada um podia ter passado a comer maçãs todos os dias e já não havia necessidade de se produzirem mais bolas de berlim, os vizinhos juntos sempre ajudaram a reduzir ainda mais o consumo e, consequentemente, a produção.
E é por isso que vejo o facto da minha família ter decidido não comer carne nessa refeição como uma pequena conquista a ser celebrada. Porque a carne que não foi comprada nesse dia, não vai necessitar de ser reposta. Diminui-se a procura, o que leva à diminuição da oferta. Por cada refeição que alguém decide não comer carne, é mais um animal que não irá ser criado e mandado matar. É mais uma vida poupada. É menos sofrimento.
É o cenário perfeito? Não! Se perguntarem a alguém se prefere levar um soco todos os dias ou levar um soco apenas três dias por semana claro que a pessoa vai escolher a segunda opção, mas o que ela quer mesmo é não levar nenhum soco de todo, seja em que dia for.
Neste caso é igual. É normal que eu e outros grilos por vezes fiquemos frustrados com pessoas que dizem que reduziram o seu consumo de produtos animais, porque uma redução não é suficiente para o objetivo que queremos, que é que nenhum animal sofra desnecessariamente. E só eliminando o consumo se pode conquistar isso.
Mas temos também que ter noção que cada passo já é uma conquista, que grão a grão enche a galinha o papo, e que embora eu fique contente se me disserem que em vez de levar um soco todos os dias vou passar a levar um dia sim dia não, ficarei muito mais contente se me disserem que não vou levar nenhum, e vou lutar para que isso aconteça. Mas por vezes as pessoas têm de se habituar a comer maçãs antes de deixarem de vez as bolas de berlim.
Portanto, em resposta ao título desta publicação, o que muda se deixares de comer carne? Pouparás a vida a um animal todos os dias, porque tu ajudas a definir a procura e, consequentemente, tu influencias a oferta.
E creio que já perceberam que quando digo carne é só para simplificar, porque o que quero dizer é todos os produtos de origem animal. (Por exemplo, sabiam que a carne é um subproduto da indústria do leite?)
Para além disso poderás viver com a consciência tranquila de que nenhum animal teve de sofrer por tua causa, reduzes o teu impacto ambiental, e mais facilmente segues uma dieta mais benéfica para a tua saúde.
Por isso, para todos aqueles que tinham dúvidas, que até tinham interesse em mudar para uma dieta de grilo mas ouvem uma vozinha que diz "Mas que diferença é que tu fazes sozinho?", já sabem que não é bem assim. Não só tu sozinho consegues fazer a diferença, como não estás sozinho. E, como se diz, a união faz a força! Então põe lá essas bolas de berlim de lado e agarra uma maçã! E, se não gostares de maçãs, lembra-te: já há bolas de berlim vegan!
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